Simplesmente Fernando Valle

"Será quase uma redundância publicar dados sobre a carreira cívica, profissional e política desta figura carismática da Democracia portuguesa"
In A Comarca de Arganil, de 3 de Agosto de 2000

Convicção, clareza e frontalidade eram algumas das características de Fernando Baeta Cardoso do Valle, natural da Cerdeira, concelho de Arganil, nascido a 30 de Julho de 1900. Filho do dr. Alberto da Maia e Cruz do Valle e de D. Maria Adelaide da Costa Cardoso do Valle.
Foi presidente honorário do Partido Socialista e um lutador nato pelos ideais da Revolução Francesa: liberdade, fraternidade e igualdade deixando registado os seus ideias de vida através de um desejo “o facto de a determinante de toda a minha vida ter sido o lutar pela libertação do homem, no sentido de se conseguir efectivamente, um regime de direito em que seja possível, de facto, a paz, a liberdade e a justiça social”.
Segundo o poeta Miguel Torga o Dr. Fernando Valle “teve tempo para ser no mundo a imagem paradigmática do jovem irreverente, do bom chefe de família, do amigo leal, do médico devotado, do político isento, do governante capaz, do cidadão exemplar”.
Em suma, como referiu Mário Soares, Fernando Valle foi “um homem, a todos os títulos, excepcional”.

“Médico-apóstolo”

Coja, a Princesa do Alva, foi a vila eleita pelo médico do povo para passar alguns momentos da sua vida na sua casa solarenga com vista sobre o rio Alva.
Para aqueles que tiveram oportunidade de privar com ele e a sorte de partilhar o seu dia-a-dia, a simpatia e a humildade são os adjectivos que mais se ouvem nas bocas dos cojenses.
António Lopes Machado no seu livro Crónicas Regionalistas: Região de Arganil, conta-nos que o dr. “herdou de seu pai essa missão de médico-apóstolo, conquistando assim a simpatia e o reconhecimento das gentes humildes do concelho de Arganil a que durante tantos anos assistiu na doença, manifestando tais sentimentos humanos que só quem pudesse pagava”.
Um homem de hábitos, inesquecíveis, não passava despercebido pelas gentes da sua terra. Sempre que passava a ponte do rio Alva, em Coja, “com a bengala furava os buracos por onde a água escoava, por forma a tirar o lixo para a água passar mais facilmente. A gente quando passava lá, sabia quando passava o sr. dr.”, relembra António Augusto.
Este homem do povo “falava bem para toda a gente, rico ou pobre, era uma pessoa que não fazia distinções de classes, tinha sempre um sorriso. Era engraçado tinha sempre um sorriso”, como nos explica Rui Tavares, sócio da firma José Feiteira & Companhia Limitada frequentada pelo “médico-apóstolo”, “nos últimos anos da sua vida quando passava um tempo em Coja. Ele tinha preferência em ir ao café da antiga Havaneza, que hoje pertence à firma José Feiteira & Companhia, entre as 10 e as 12 horas da manhã”.

“Nunca errei com sentido voluntário”
Fernando Valle

Com os seus hábitos vincados pelos seus 104 anos de vida, fizesse chuva ou fizesse sol o dr. percorria sempre o trajecto de sua casa ao café a pé, num percurso de cerca de 500 metros, passando em primeiro pelo vendedor de jornais.
“Comprava o jornal Público, passo a publicidade, e, então, entrava no café cumprimentava-nos e sentava-se sempre na mesma mesa. O que só não aconteceria se por qualquer motivo estivesse ocupada. Mas, algumas vezes aconteceu estar ocupada por pessoas que o conheciam e que sabiam do seu hábito, imediatamente, davam-lhe o lugar, ele dizia que não, “deixem-se estar”, mas as pessoas faziam questão de ele ocupar aquele lugar. E, então, estendia o jornal em cima da mesa, tirava a sua lupa, o seu caderno de apontamentos e fazia as suas leituras. Nós, claro, já sabíamos o seu hábito. Preparávamos-lhe o galãozito, a torradinha e colocávamos na mesa dele. Ele parava as leituras e tomava o galão e a torrada até por volta do meio-dia, sensivelmente”, recorda Rui Tavares.

“Eu gosto bem de cá andar”
Fernando Valle

Apaixonado pela vida este Homem “a todos os títulos excepcional” não vivia intimidado pela certeza da morte. Rui Tavares conta que “já quase no final da vida dele houve um senhor que entrou (no café) e que o conhecia, também, e que o cumprimentou. Fez-lhe uma festa e depois disse-lhe: «o sr. dr. inda cá vai andar muitos anos, o sr. inda está um jovem» e o dr. Fernando assim com aquele sorriso, aquele ar, digamos que de alguma maneira maroto pelas palavras olhou para o homem e disse: «mas olhe que eu gosto bem de cá andar»”.
De facto, segundo Mário Soares, os seus 104 anos de vida não passaram indiferentes a todos aqueles que privaram com ele e que continuam a admirar os feitos deste republicano, maçon, socialista, presente na primeira linha de combate contra as ditaduras desde o tempo de Sidónio Pais ao Caetano.
Assim, a firma José Feiteira & Companhia Limitada encontrou uma forma simples de homenagear o dr. do povo, sem a intenção de obter qualquer tipo de contrapartida, através de uma fotografia simbólica de alguns momentos mais importantes da vida deste cidadão que se sentia bem próximo das pessoas, fossem ricas ou pobres.
“Embora, não o fizéssemos com qualquer ideia de agradecer, mas como reconhecimento da preferência que ele ao longo da sua permanência em Coja, deu à nossa casa. E, então, colocámos por cima do lugar que ele habitualmente ocupava a tomar a sua torrada e a ler o seu jornal. É uma homenagem digamos que também para perpetuar, e não precisa porque ele já está perpetuado de muitas maneiras até pela sua própria vida, mas pronto. Para perpetuar a nível de quem nos visita a casa, perpetuar um cliente ilustre e que nos deu sempre a sua preferência”, afirma Rui Tavares.

O amor como arma

A razão pela qual Fernando Valle preferia a mesa, talvez encontre explicação no facto de existir uma saliência na parede que o abrigava da corrente de ar da porta de entrada. E deste modo, descobrimos, provavelmente, um dos segredos de uma vida longa, segundo Rui Tavares “ele chegou àquela idade, porque se protegeu, porque teve cuidados que muitas vezes nós não temos. Ele, possivelmente, deve ter tido esses cuidados, e, penso eu, escolheu aquela mesa porque o protegia da corrente de ar da porta da rua”.
A verdade é que este Ser vai ficar para sempre na memória de todos. José Eduardo Mendes Ferrão, ex-ministro da agricultura, numa homenagem ao médico-apóstolo referiu que “o dr. Fernando Valle vai permanecer pelos tempos fora, não tanto por causa das placas das ruas ou no nome da ponte que delicadamente e firmemente recusou, mas no coração daqueles que o conhecem e o seu exemplo e postura hão-de ser contados às gerações, que na continuidade dos tempos se irão seguir”.
E é com saudade, carinho e com um enorme orgulho que todos aqueles que privaram e partilham os mesmos ideais deste Ser que o recordam e perpetuam ao longo dos tempos o Homem, o amigo e o exemplo de um lutador que guerreava pela paz, pela liberdade e pela justiça social, tendo como arma preferida o amor pelos outros.

Cristina Correia Pinto
in A Comarca de Arganil

Comentários

Deus Malveiro disse…
Será que o dr Fernando Vale teve um consultório em Relíquias-Odemira nos anos 50?
Os meus pais contavam-me que um médico que estava em Relíquias naquele tempo chamado Fernando tinha feito o parto á minha mãe quando eu nasci.
Gostaria muito de saber se é a mesma pessoa.
Anónimo disse…
Excelente artigo!
Beldeca disse…
Partiu para Oriente eterno, mas a memória dos seus atos perdurará para sempre, é isso que faz a diferença...

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