As guilhotinas do conforto

Dona Rosinha é uma mulher cujo físico aparenta ter 70 anos. Vive feliz no meio de uma família que está a solidificar, à medida que o tempo e as necessidades são maiores. A rua é a sua casa, o Jardim Constantino é o seu porto de abrigo.
Para trás estão mais de quatro décadas de sacrifícios em prol de um futuro risonho e tão seguro como as sequóias que lutam umas com as outras à procura de sol.
“Não sei como vim aqui parar, mas sei como daqui vou sair”, afirma vezes sem conta enquanto olha para as pombas que a procuram como se a quisessem levar a voar pela capital portuguesa.
“Vou sair daqui mais rica. Hoje, dou valor a pequenas coisas, como por exemplo à importância de um botão no casaco”, refere.
De poucas palavras e bastante assertiva. Dona Rosinha, como é carinhosamente tratada pela família que a acolheu na rua, adora passar o tempo a contar estórias de vivências passadas. “Entretenho-me a fazer sonhar e a guiar os meus companheiros por sítios por onde passei, ao mesmo tempo, que recrio uma nova realidade, baseada na esperança”, explica.
“Não vou contar nada sobre os sítios por onde passei, porque as coisas têm de surgir na altura certa. Normalmente, só conto quando vejo alguém mais desanimado”, revela desabafando que o que mais lhe custa é a forma como algumas pessoas a abordam na rua.
Com apenas 50 anos. O espírito de Dona Rosinha espelha uma vida de uma miúda de 20, como ela própria considera. “ Sou uma miúda… uma criatura que vive muito presa ao passado, talvez por ainda ter muita coisa para resolver, principalmente de espírito”, desabafa.

Viver na rua é duro, mas sinto-me livre”

Carente e desiludida com a turba que a rodeia e, que a condena por viver da sopa dos pobres, à mercê do que vai surgindo vindo de “almas puras”, Dona Rosinha deixa uma lágrima mais teimosa, seguir uma espécie de rota pelas rugas que lhe acrescentam mais duas décadas. “Só gostava de um colo, onde pudesse chorar. Oh, minha Santa sinto-me um cata-vento, o que é positivo porque enquanto tiver a capacidade para sentir o vento é sinal de que vivo. Sabe o vento aquece-me a alma…vivo para a natureza e do que ela dá”, acrescenta.
Com uma personalidade vincada pelo materialismo e uma imagem marcada por maus-tratos, esta mulher cada vez tem mais dificuldade em aceitar ajuda por parte de Instituições.
“Foram muitos anos a viver com um homem que me tratava como um objecto. Ele raptou-me. Obrigou-me, quando eu tinha 16 anos, a dizer aos meus pais que queria sair de casa para ir servir. Como a vida estava má, os meus pais aceitaram. Ele tinha papéis falsos, tinha tudo tratado para me levar… nunca soube onde estive”, desvenda e trava uma luta interior para as lágrimas se manterem a dançar nos seus olhos verdes.
“Levei muita tareia, comi o pão que o diabo amassou, não podia sair de casa… não tinha vida. Hoje, sou livre. Ele bebia muito e morreu de cirrose passados 30 anos de me ter raptado”, diz-nos num discurso cada vez mais confuso e com uma vontade enorme de se libertar das guilhotinas do passado.
Antes de fazer do Jardim Constantino o palco da sua vida, passou por um palacete. “Vivi como uma princesa, habituei-me a ter tudo e mais alguma coisa. O meu companheiro não me deixava faltar nada, juntos corremos mundo. Fui muito feliz até ao dia em que ele foi assassinado. Fiquei completamente perdida. Sozinha e com uma fortuna enorme, só me sentia bem nas lojas a comprar. Gastei tudo, fiquei empenhada e a solução foi esta: vir para a rua”, conta e olha para o céu estrelado.
“Adorava viajar de avião de noite. Sentia-me uma estrela. Mas como me pude tornar numa pessoa tão materialista, tão amargurada…? Agora tenho de pagar por não ter tido força, nem ter ouvido os passos das pessoas que me queriam acompanhar e dar a mão. Tenho de aprender por mim. Viver na rua é duro, mas sinto-me livre”, considera.
Cristina Correia Pinto
30 Outubro de 2008

Comentários

Anónimo disse…
O difícil é aceitarmos que somos uns esbanjadores de pessoas.... que as deixamos entrar na nossa vida para escorraçar logo aquelas que nos querem dar a mão.

Mas, ser livre, às vezes tem destes preços...

Não te esqueças de voar enquanto tens asas!

Gostei muito!
Sara Militão
Gentes da Beira disse…
Sara:

Que dizer? Tens toda a razão.

O Ser Humano tem destas coisas, tem muitos caminhos à escolha mas atrai, ou escolhe sempre aquele que é o mais árduo, na maioria das vezes.

Beijinhos

Mensagens populares deste blogue

Nuno Mata lança livro sobre “Alberto Martins de Carvalho – o Homem, o Autor, a Biblioteca”

Procópio Gageiro um canteiro artesão... “com trabalhos espalhados pelo mundo inteiro”

Conscientes e Psicopatas