No Pico do sismo em 1998

Guiada pela onda do revivalismo e pela habitual moda de trazer factos passados ao presente, ou não fosse esta uma constante da nossa essência, abro a gaveta dos escombros da minha memória e tento resgatar as vivências do sismo que em 1998 abalou as ilhas do Faial, Pico e São Jorge.
Estava a noite calma, no céu as nuvens davam lugar aos cordeirinhos e, na minha mente desfilava uma película com questões alusivas à oportunidade que tinha em passar uns dias numa ilha, com alguns elementos da minha família. Era tudo como que um desfecho, um aproveitar das últimas horas as férias por terras açoreanas.
Nessa noite, 8 de Julho, tinha um aperto no coração, uma ansiedade frustrada por não termos arranjado grupo para pernoitar no cimo da Ilha Montanha (denominação atribuída ao Pico) e ver a actividade diária do sol, bem como o poder que aquele ‘miradouro’, onde se ergue o Pico Pequeno ou Piquinho, a 2351 m de altitude, tem em prolongar o nosso olhar até ao horizonte.
Era uma noite perfeita. O dia tinha sido longo, o tempo dava para os sentidos absorverem tudo de forma tranquila e desencontrada, a natureza dava-nos a hipótese de sermos nós a escolher e a usá-la conforme queríamos. Tudo tinha um ritmo perfeito, uma leveza única, uma magia de conto de fadas retirado de um qualquer livro sobre a ilha, à espera de conhecer mais sobre a facilidade de penetrar num sonho e a dificuldade de sair dele.
Durante a noite, estava longe, era mais uma personagem dos meus sonhos, dormia um sono que à partida deveria parecer profundo, mas que foi despertado pelo tilintar dos objectos nos armários.
A primeira reacção foi tentar perceber onde estava e reconhecer o local, não foi fácil porque há medida que tentava raciocinar, uma súbita luta entre a razão e os sentidos apoderava-se de mim. Até que surgiu a afirmação ‘Estou numa ilha é normal haverem tremores de terra’. Os segundos começavam a ficar longos, por que não me conseguia lembrar de tudo o que me tinham ensinado na escola sobre estes fenómenos, deixei de saber o que fazer, aliás, isso deixou de fazer sentido pois o berro e a sacudidela que a terra dava pedia que nos entregássemos.
O medo apoderava-se. Os gritos dos moradores ouviam-se. O cão, que há 3 dias ladrava sempre a esta hora, permanecia calado. A escuridão fazia-nos permanecer inertes, na cama, a ouvir pedaços de cal a cair no quarto, num acerto perfeito com as batidas aceleradas do coração, enquanto tudo à nossa volta tentava reconquistar o seu lugar.
Nesta fase, podia tentar encontrar mais adjectivos, mais palavras para conseguir dar uma percepção maior e mais objectiva daquilo que senti e vivi, em Almagreira, em plena ilha do Pico às 5:19 da madrugada. Para a descrição ser mais fácil recorro ao fenómeno da trovoada. Talvez porque cada vez que ouço aquele som, recordo os cerca de 30 segundos mais longos da minha vida, dominados pelo medo, pela ideia de tudo ir acabar ali e pela força da terra a tremer.
Na rua, o pânico era visível. As réplicas sentiam-se e pairava no ar a possibilidade de os 5.6 na escala de Richter voltarem a ser repetidos ou superados. Aquela quinta-feira, 9, amanhecia caótica, com um turbilhão de sentimentos, agravado pela presença das sirenes das equipas de socorro.
Sem comunicações. A angústia apoderava-se das pessoas e a ilha transformava-se num grande continente. As habituais nuvens que surgem abaixo da cratera do Pico Grande resolveram desaparecer para mostrar a beleza da montanha. Em contraste, o cenário era de dor, de derrota e os destroços não deixavam sentir o aroma da terra em comunhão com os restantes elementos – água, ar e fogo.
Comentava-se que os pescadores que nessa noite andavam na faina, por momentos sentiram o mar rijo, como se de uma pedra se tratasse, ao mesmo tempo que viram sair das suas profundezas uma língua de fogo.
Conta-se que, apesar de tudo, a hora a que a terra tremeu até foi abençoada, uma vez que algumas pessoas já se encontravam acordadas e tiveram tempo de reagir, caso contrário podia ter sido bem pior.
À semelhança de um guerreiro que está a lutar no campo errado e para fazer jus ao previsto, saí da ilha na sexta-feira, 10, rumo ao Faial para regressar ao Continente, agradecendo por este fenómeno ter acontecido depois de a Natureza me ter apresentado a sua melodia e comunhão com o brilho que raia da imensidão dos pequenos sinais. Escusado será dizer que aquele terceiro palco onde o sismo tinha actuado, tinha as marcas de uma dança e sinfonias arrasadoras.
Com o oceano revoltado a separar as ilhas, o Piquinho foi religiosamente guardado pela calma do manto branco que tapou o azul do céu, parecia que quem comanda este planeta queria mostrar, mais uma vez, aquilo que todos nós sabemos – enquanto, a Natureza parece adormecida, grande parte da Humanidade vive convencida de que detém controlo sobre tudo e, na ilusão de um poder absoluto, constrói castelos com tudo o que é digno da nobreza, ignorando que basta um simples gesto para que tudo desapareça.
Em suma, os palheiros, na grande maioria das vezes, são mais fortes e mais fáceis de reconstruir do que as muralhas de pedra.
Cristina Correia Pinto
23 de Maio de 2008

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