A deambular por Santa Comba Dão


Às voltas pela cidade santacombadense sou guiada pela história, conduzida pelas ruas estreitas de granito (as minhas preferidas) que não me dizem para onde me levam, porque fazem questão de me pôr onde querem.
Resolvo começar pelo Largo do Balcão, um espaço amplo com alguns sinais de modernidade e, desço pela Rua Alexandre Herculano, sem dúvida que é a tal rua que me deixa com mais vontade de a calcorrear vezes sem conta, pois há sempre um pormenor diferente para reparar (quanto mais não seja no povo que na Taberna do Aníbal, mais conhecida por ‘Parlamento’, joga às cartas, bebe uns valentes copos para recordar alegrias e esquecer sabe-se lá o quê… um local típico que até já tem letreiro a dizer ‘Há café’).
As pedras da calçada teimam em prender a minha marcha, e os saltos das senhoras, quase de propósito, em frente ao Parlamento para tentar perceber (não o por quê de os homens não deixarem de mandar um piropo ou de estarem ali com conversas ‘frutíferas’ sem acção para combater o vício da copofonia) como ali outrora as gentes faziam render os seus produtos, na velhinha praça.
Hoje, é um espaço onde as crianças se entretêm a brincar enquanto duas ou três mesas acolhem o tal grupo de deputados, quando o tempo começa a aquecer. Apesar de ali haver uma fonte, a água que corre e sacia a sede é outra e tem várias cores. Ironias à parte, torço para que o pipo não chegue ao fim.
Mais alguns metros à frente e a rua fica mais estreita. Surgem as mesmas perguntas de sempre a invadir-me o pensamento, para ver se desta vez já tenho respostas para gostar tanto deste passeio – Quem foi a mente que arquitectou este espaço? Quem foram os braços que tão bem sobrepuseram pedras de granito em forma de puzzle? Enfim… convém deter a ânsia de saber e não me dispersar, uma vez que as ruas paralelas estão a exercer um poder tal sobre mim para que eu, ainda, vá hoje ao Rossio, mas sou mais forte e antes quero ir ao Largo da Ponte da Praça (hoje mais conhecido por Largo da Câmara) passear uma última vez na velha calçada, recordar o velho chorão que segredava às águas da ribeira tudo aquilo que via, sabia e sentia.
Passo pela barbearia dos irmãos Fernando e José Soares, mais conhecida pelo "Zé do Rego", e lembro-me do movimento que teve e que dava à rua. Quantas histórias cresceram mais fortes e quantas memórias ficaram ali cortadas?
Sinto uma enorme nostalgia, embora a rua me guie para algo novo, não consigo deixar de me revoltar por as casas estarem abandonadas, as lojas fechadas e, por não encontrar mais nenhum transeunte. Tenho saudades daquele medo que sentia quando vinha um carro e tinha de me encostar ao máximo à parede e a rua quase que por magia alargava sempre.
Depressa cheguei ao Largo da Ponte da Praça e o meu pensamento vai para os tempos mais remotos, imagino os meus antepassados a encher os cântaros de água na fonte, as mulheres a lavarem a roupa na ribeira… sinto o cheiro a sabão e reparo naqueles pés descalços a beijarem o chão, enquanto os mais ilustres atravessam a ponte romana e se dirigem ao pé do pelourinho para falarem e pôr as ideias em dia. Trocada a palavra sobem até ao Bairro Alto e desaparecem por entre becos e ruelas.
Abro os olhos e parece que sou atirada brutalmente para uma nova realidade. Estou numa terra renovada. Se o senhor Pedro fosse vivo já não podia estacionar a carrinha do peixe. Está tudo tão diferente. As pedras da calçada foram substituídas por outras e a sombra do velho chorão (há muito inexistente) dá lugar a um espaço cada vez mais solarengo.
Entristeço-me, resolvo parar por aqui. Sim! Gosto do que os meus olhos vêem não vou negar. Só que tenho saudades e pena por não se manter o piso do passado. Posso estar enganada mas Santa Comba Dão é uma cidade com história, uma terra antiga que parece estar a querer ficar moderna à força.
O que me deixa intrigada é o facto de antigamente as pedras da calçada não magoarem aqueles pés descalços e, hoje o calçado é mais sofisticado, há cada vez mais por onde escolher e as damas não conseguem encontrar o que de melhor se adapta ao piso da velha infância.
Sei que é necessário melhorar as infra-estruturas, adaptarmo-nos ao tempo... mas será que é de todo preciso fazê-lo quando não se tem dinheiro? Que gosto dá passar por um espaço que não está pago e, quando as pessoas estão a sair da terra, principalmente os jovens, por que aqui não encontram ocupação, nem o apoio necessário para se fixarem? Como é que o pequeno comércio vai sobreviver, se o estacionamento vai ter parquímetro, se os carros já não passam à porta e param nas grandes superfícies?
Subo a Rua do Forno e tento memorizar cada sinal da calçada. Custa-me subir. As pedras prendem-me em jeito de desespero e perguntam-me por quê? Por que tudo tem um fim, por que é preciso fazer plásticas, não sei. Digo-lhes comovida com o seu desespero.
Chego ao Rossio. As casas de granito, esculpidas e construídas sobre os penedos, abrem os braços ao sol. As mulheres sentam-se na escadaria a conversar, talvez a recordar os bailaricos que ali se faziam e dão comida aos gatos. Um mais traquino do que outro dão vida àquele espaço. Os carros ali estacionados são o seu abrigo e motivo de brincadeiras. Se não fossem os carros, que para ali conduzem os seus proprietários, quem é que ali ia com tanta frequência?
Resolvo parar este meu passeio e volto ao Largo do Balcão pelo percurso inverso, com a certeza de que vou voltar a deambular por Santa Comba Dão e, reavivar as estórias da sua história, com o saudosismo salutar para construir a minha calçada santacombadense.

Cristina Correia Pinto
05 Maio de 08

Comentários

JoaqCP disse…
Cristina, gostei de deambular por Santa Comba Dão; a leitura do texto foi acompanhada pelo "vídeo" da lembrança (que só falhou na nova Ponte da Praça que ainda não tive ocasião de ver). Fico à espera de novos percursos.
Um abraço
JoaqCP
Gentes da Beira disse…
Fico contente por ter gostado. Obrigada pelo incentivo
Horus disse…
Por vezes caminhamos sobre pedras sem nunca pensar na sua história, no seu propósito ou mesmo no seu futuro... "são apenas pedras" pode-se pensar, mas um passeio tão introspectivo revela algo mais rico que simples pedras, revela o amor pelo local, a saudade da paisagem e até mesmo um sentimento de conforto por aquelas simples pedras fazerem de um sítio a nossa casa.
As pessoas, lojas, animais e mesmos os carros dão vida e ambiente, calmo porém vivo, ali à espera de ser encontrado por quem o quiser explorar e ninguém melhor para o fazer do que alguém que com ele vive e alimenta as suas histórias.
Foi um bom passeio e foi melhor ainda a sua descrição... que muitos passeios tenhas e muitas calçadas de pedras possas percorrer.
Sheila disse…
Olá Cristina. Encontrei seu texto enquanto buscava por informações sobre parte de minha família, residente em Santa Comba. Meus tios, já falecidos, forma citados em seu lindo texto e isso me animou a escrever para perguntar se você teria notícias de minha primas, Paula e Guida, filhas do tio Fernando. Sou brasileira e irei visitar Santa Comba em agosto, gostaria muito de revê-las. Eu me refiro a esta citação:
"Passo pela barbearia dos irmãos Fernando e José Soares, mais conhecida pelo "Zé do Rego", e lembro-me do movimento que teve e que dava à rua. Quantas histórias cresceram mais fortes e quantas memórias ficaram ali cortadas?"

Obrigada

Sheila Ribeiro Pereira
Sheila disse…
Olá Cristina. Encontrei seu texto enquanto buscava por informações sobre parte de minha família, residente em Santa Comba. Meus tios, já falecidos, forma citados em seu lindo texto e isso me animou a escrever para perguntar se você teria notícias de minha primas, Paula e Guida, filhas do tio Fernando. Sou brasileira e irei visitar Santa Comba em agosto, gostaria muito de revê-las. Eu me refiro a esta citação:
"Passo pela barbearia dos irmãos Fernando e José Soares, mais conhecida pelo "Zé do Rego", e lembro-me do movimento que teve e que dava à rua. Quantas histórias cresceram mais fortes e quantas memórias ficaram ali cortadas?"

Obrigada

Sheila Ribeiro Pereira

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