Um rewind sentido para aliviar o sentimento da dor

Uma vida simples, banal e brutalmente imortalizada por uma simples arma de combate. Uma dor sacrificada na solidão de um momento de família, igual ou parecido com tantos outros. Serafim Vitória deu-nos a chave do seu álbum de memórias e deixou que abríssemos as portas e as janelas da sua vida, com o desejo de um reencontro, de uma nova explicação para aquele dia 13 em que tudo mudou.
Passada mais de uma década, sem saber precisar ao certo quando tudo aconteceu, a força das suas palavras ecoam por entre dias de azáfama e rasgam os ouvidos mais teimosos.
Ao falarmos com Serafim o coração batia forte. As suas rugas traçavam-nos um homem sedutor. O olhar unia a sabedoria típica da distância de duas gerações. O sorriso fazia-nos sentir tranquilos.
“Sei o que me vai acontecer”, começou por nos contar naquela noite primaveril. Olhámos espantados e interceptámos o nosso interlocutor, na esperança de este ser um desabafo tão normal vindo de pessoas que sabem como ninguém qual a melhor estação para plantar e arrancar fruto.
“Acreditem que sei do que estou a falar”, afirmava com voz firme, perante a incredulidade da nossa reacção, e em jeito de despedida como se o tempo da nossa reportagem estivesse a chegar ao fim, sem conseguirmos sequer escrever um guião. Falhámos. Não tivemos a astúcia para nos recordarmos do famoso paradigma de Lasswell, fomos dominados por tudo, traídos por uma bússola, enganados por aquilo que se chama, vulgarmente, de sexto sentido.
Tentámos recompor-nos de um dia em que matámos saudades de momentos partilhados com este Sábio Mestre, mas desta vez estávamos mais confiantes. Pecámos por querer aceitar que nunca mais íamos perder este interlocutor. Talvez… iludidos pela ideia de que à medida que crescemos fortalecemos laços e nada os vai quebrar, muito menos quando se trata de uma pessoa mais velha do que nós, que já fintou tanta coisa e, está ali pronto a contar, a recontar e a escrever novas estórias, como um avô faz para um neto.
Como jornalistas errámos e não nos afastámo das emoções. Como seres humanos pressentimos que algo estava mal, que havia ali algo que nos ultrapassava. Mas, enquanto jornalistas humanos tivemos consciência de que somos impotentes e que nada podemos fazer para derrotar a morte, mesmo quando está tudo ali para a impedir.

“Há alturas em que somos pequenos demais para podermos guardar determinados actos na nossa memória”

Como um bom chefe de família partilhou o pão, desta vez não o fez por termos fome, fê-lo apenas para saciarmos a gula e, para não questionarmos nada, apenas para aproveitarmos o momento. As mãos grossas, com dedos amarelados do tabaco provocavam-nos admiração, uma espécie de hipnotismo, enquanto era partido um pedaço de pão.
“Por ser a mais curiosa e a que mais gostava daquele pão, tive a honra de ser a única a ficar com a metade que o senhor Serafim tinha guardado, para ele, no bolso. Quando estendi a mão…vi naqueles Sábios olhos o quanto se sentia bem por eu estar a aceitar. Senti-me pequena e envergonhada parecia que já não comia há séculos.”, descreveu-nos Isabel Cordeiro, uma das jornalistas que privou connosco estes momentos.
Todos estávamos de acordo, era fascinante vê-lo enrolar os cigarros certos de que um dia iríamos fazê-lo com a mesma destreza, ora por vício, ora por prazer, ora por ser tradição… ora porque queríamos dar da mesma forma.
Sabemos que há sempre alguém que ganha sentido de oportunidade, que é preciso furar, anteciparmo-nos, mas com Isabel Cordeiro, tudo foi diferente, Serafim Vitória protegeu-a, deu-lhe a informação que ela precisava.
“Eu admirava-o. Era sem dúvida um ídolo que reunia tudo e todos à sua volta, senti-me responsável por ele, prometi à direcção que ia proteger a sua imagem e que não ia deixar que a ‘concorrência’ o magoasse. Se bem que não percebi muito bem porque agia assim, afinal faz parte da profissão encontrarmos pessoas que são mais do que entrevistados”, confessa-nos Isabel certa de que foi connosco enquanto aprendiz e não na qualidade de uma jornalista que vai ali para empatar o trabalho dos outros, ou esgravatar o lado sensacionalista e mercantil da essência humana.
“Há alturas em que somos pequenos demais para podermos guardar determinados actos na nossa memória. A nossa pequenez faz-nos assimilar tudo, acabamos por ser espectadores para quando tivermos de agir não falharmos. Quem anda nisto há muito tempo sabe as nossas fraquezas. Uns aproveitam-se disso para nos destruir e tornar ainda mais pequenos, outros dão-nos as directrizes para encontrarmos um caminho, garantindo-nos de que vão estar sempre ali para nos ensinar”, começou por nos contar Isabel.
Num discurso de quem foi forçada a não se despedir e a encontrar norte numa bússola que perdeu ponteiro, Isabel estava certa “não interessa se a pessoa é ou não da nossa família, nem temos de gostar de alguém por ser do nosso sangue”, mas escondia-nos algo.
“Gostava de falar com aquele Sábio Mestre. Quando comecei a trabalhar acreditava que no Grupo Editorial toda a gente estava ali para a mesma causa e que era aceite, afinal era da ‘família’. A chefia que lidava comigo mais directamente estava desanimada, não percebia porque motivo nem toda a gente me aceitava. Confesso que isso me passou sempre ao lado, uma vez que nada me faltava. Até que um dia resolveram ir comigo a um departamento muito idêntico, pensava que era normal. Até que ouvi alguém, a dizer ‘a Isabel vai passar a exercer funções neste departamento. Não faz sentido estar sempre no mesmo. Ela tem capacidades para muito mais e não a podem continuar a ignorar’. Fiquei surpreendida”, avançou-nos.
Depressa Isabel começou a gostar daquele departamento e aos poucos dava nas vistas e preenchia várias lacunas. Só não percebíamos o peso de Serafim Vitória na sua vida, nada fazia sentido.
“Mais tarde vim a saber que quem me colocou naquele departamento foi o Serafim Vitória. A tal pequenez inerente a quem está a crescer, impediu-me de reconhecer inúmeras vezes a pessoa que me levou ao campo de batalha para eu vencer, apenas e só porque ele nunca me disse: ‘estás bem graças a mim’, nem teve nenhuma atitude que me fizesse pensar tal”, desvendou-nos.
Agora começávamos a perceber tudo e compreendíamos como nunca que ela não era a preferida, nem a privilegiada, que nunca teve acesso a informação que nós não tivemos. O Serafim sempre esteve ali no Grupo Editorial nós é que tentámos ser ídolos aos seus olhos, na sofreguidão de ter o lugar dele, enquanto a Isabel aceitou as instruções do mestre e conseguiu um lugar de destaque, o tal lugar que lhe permitiu comer aquele que parecia ser o melhor pedaço de pão e que era igual ao nosso. Só que ela saboreou-o daquela forma especial e, ainda hoje acredita que o dela era o melhor, porque sempre teve confiança nos ingredientes usados pelo Serafim.
“Ninguém está preparado para a perda. A morte do Serafim foi o pior momento da minha vida. O Serafim levou-me ao campo de batalha para ganhar e ele foi lá certo de que ia morrer, mas tinha de ir”, explica Isabel revoltada por não ter aceite este desfecho de uma vida de sacrifício, de defeitos e virtudes típicas de qualquer ser humano.
À semelhança da Isabel são inúmeras as lições que continuamos a aprender com este Sábio Mestre -, a pior cobardia é negarmos que precisamos dos outros para vencer.
Cristina Correia Pinto
14 Junho de 08

Comentários

Horus disse…
Se a união faz a força, consegues provar da melhor forma... e nunca é tarde para se aprender.

Bonito texto que vive de bonitas palavras de homenagem... afinal o campo de batalha foi util...

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